quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Por Josias de Souza, da Folha: "Em belo discurso, McCain prevalece sobre a derrota"

Quem quiser alcançar a dimensão histórica do que se passa nos EUA precisa dedicar um naco do seu tempo à leitura do discurso do derrotado.

Surrado por Barack Obama, John McCain soube perder. Melhor: soube vencer a derrota, digerindo-a com rara e fina elegância.

Apreciar o discurso do vencido traz uma vantagem adicional. Tira-se proveito de uma peça cuja riqueza está em expor a pobreza do debate político.

McCain falou para correligionários machucados. A primeira referência que fez a Obama arrancou vaias da platéia.

Poderia ter saciado a sede de sangue do seu exército com um pronunciamento de timbre vingativo. Preferiu oferecer ataduras.

McCain calou os apupos com nobreza. “Há pouco, tive a honra de telefonar para o senador Barack Obama, para parabenizá-lo”, disse.

“Em uma disputa tão longa e difícil quanto foi a dessa campanha, o sucesso dele demanda meu respeito por sua habilidade e perseverança”.

A história é uma senhora seletiva. Pouca coisa sobrevive aos corredores frios da posteridade. Protagonista do circunstante, McCain revelou-se digno de ir à estante.

Em vez de quebras lanças contra a história, o derrotado ajudou a escrevê-la: “Esta é uma eleição histórica...”

“...Reconheço o significado especial que ela tem para os afro-americanos e para o orgulho todo especial, que deve ser deles nesta noite”.

Recordou os tempos em que “velhas injustiças” eram impostas aos negros americanos. Coisas que “mancharam a reputação” dos EUA. E foi ao miolo do fenômeno:

“A América está hoje a um mundo de distância do fanatismo cruel e apavorante daqueles tempos...”

“...Não há melhor prova disso do que a eleição de um afro-americano para a presidência dos Estados Unidos”.

Em vez de necropsiar a própria derrota, McCain pôs-se a enaltecer o triunfo alheio. “O senador Obama alcançou um grande feito para si mesmo e para este país. Eu o aplaudo por isso.”

Recordou a morte da avó do rival, ocorrida na antevéspera da eleição. Disse que, “na presença do Criador”, a velha senhora haveria de estar “muito orulhosa do bom homem que ela ajudou a criar”.

McCain realçou divergências: “O senador Obama e eu tivemos e discutimos sobre nossas diferenças, e ele prevaleceu. Muitas dessas diferenças permanecem”.

Na seqüência, teve a sabedoria de acomodar o interesse público acima das desavenças: “Estes são tempos difíceis para o nosso país...”

“...E eu prometo a ele [Obama] nesta noite fazer tudo em meu poder para ajudá-lo a nos liderar através dos muitos desafios que vamos encarar”.

Nos parágrafos finais de seu discurso, McCain, podendo escolher um dos Napoleões que a historigrafia lhe ofecere, optou pelo Napoleão da coroação, não o de Waterloo.

“Hoje, fui um candidato ao posto mais alto do país que amo tanto. E, nesta noite permaneço um servo. Isso é benção suficiente para qualquer um...”

“Nesta noite, mais do que em qualquer outra noite, tenho em meu coração nada mais que amor por esse país e por todos os seus cidadãos, tenham apoiado a mim ou ao senador Obama...”

“Desejo boa sorte ao homem que foi meu oponente e será meu presidente. E peço a todos os americanos [...] que não se desesperem diante das atuais dificuldades...”

“...Mas que acreditem, sempre, na promessa e na grandeza dos EUA, porque nada é inevitável aqui”.

Como se vê, McCain é o tipo de personagem que vale cada minuto de curiosidade. Já valia antes, aliás.

Em 1967, McCain pilotava um avião da Marinha sobre o Vietnã. Foi abatido. Amargou cinco anos e meio numa solitária.

Os inimigos moeram-lhe os ossos. Hoje, não consegue levantar os cotovelos acima dos ombros. Com o discurso da derrota, mostrou que sabe conservar a cabeça erguida.

Submetido à tortura de guerra, não entregou ao inimigo um mísero nome. Recusou a liberdade em troca de uma abertura do bico.

Aos que enxergam heroísmo na jornada vietnamita, McCain responde com humildade de servo: "Você não precisa ser um sujeito brilhante para ser derrubado por uma bateria antiaérea."

Neste 2008, abatido pelo míssel da novidade Obama, o velho marinheiro cavou na trincheira do verbete da enciclopédia um lugar de destaque. Com o discurso de um sujeito brilhante, McCain prevaleceu sobre a derrota.

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