segunda-feira, 4 de julho de 2011

Itamar era controverso, mas não ambíguo moralmente. Morre um político pobre, e isso é mesmo uma notícia um tanto espantosa. Ou: Uma estranha forma de a “Virtù” se casar à “Fortuna”.

Morre Itamar Franco, aos 81 anos. Era um político controverso, polêmico, mas não moralmente ambíguo. Morreu pobre, por exemplo, com um patrimônio compatível com a sua trajetória de homem público. E isso, convenham, é tão raronestepaiz que já merece ser aplaudido, especialmente no tempo em que petistas, que se apresentam como monopolistas da ética — e assim se colocaram também contra Itamar —, ficam milionários da noite para o dia fazendo “consultoria”. Itamar tem uma boa folha de serviços prestados ao país. Sem querer usar a contradição como muleta dialética, pode-se afirmar que sua maior besteira acabou resultando no maior bem que fez ao país; que seu maior defeito acabou sendo a sua grande qualidade. Vamos ver.
Que besteira foi essa? Itamar pertencia àquele grupo que viria a ser conhecido como os “autênticos do MDB”, eleito na leva de senadores de 1974, a primeira derrota da ditadura nas urnas. Integra mais tarde o PMDB e ali permanece até 1986, quando deixa o partido, tangido pelos “patriotas” de Newton Cardoso, o “Newtão” — que não morre pobre nem que comece a queimar dinheiro amanhã. Migra para o PL e se torna, então, um político bem maior do que o seu partido. E é nessa condição que faz a tal besteira que virou tábua de salvação: aceita ser o vice na chapa de um certo rapaz chamado Fernando Collor de Mello. Itamar migra para o PRN — Partido da Reconstrução Nacional —, a legenda inventada pelo “caçador de marajás” e é eleito vice-presidente da República.
Collor queria alguém que lhe conferisse alguma credibilidade no meio político. Itamar era a figura mais próxima do establishment a lhe dar ouvidos. Já durante a campanha ficou claro que era um peixe fora d’água naquele grupo que ficou conhecido como “República de Alagoas”. Eleita a dupla, o vice ficou encostado e dava sinais evidentes de desconforto com o “estilo” e as escolhas do titular. Nunca foi ouvido, consultado ou auscultado. Era ignorado pelo fortão que tinha “aquilo roxo” e aquilo outro menos cinzento do que se imaginava…
A crise que resultou na renúncia de Fernando Collor, diante de um impeachment certo, conferiu grandeza à biografia de Itamar Franco. Deu-se conta da gravidade do momento, percebeu que só conseguiria governar propondo uma espécie de pacto entre os partidos e, a despeito de seu dito “temperamento mercurial”, não se entregou a arroubos cesaristas.
Atenção, leitor! Neste ponto, deixo o “fio Itamar Franco” para pegar um outro: o “fio PT”. Depois, junto os dois. Destaco um momento notável de má fé do partido, que, por caminhos inesperados, também faria um grande bem ao país.
PT na oposiçãoO PT, junto com quase toda a nação, participou ativamente do “Fora Collor”. A mobilização dos chamados “movimentos sociais” ficou por conta da legenda, então principal alvo de Collor, que a acusava de tentar disputar o “terceiro turno” das eleições — acusação que os petistas fazem hoje a seus adversários; não por acaso, Lula e Collor são agora aliados.
O PT, que ajudou a derrubar o governo, recusou-se a participar da base de apoio a Itamar Franco — e olhem que era aquele um momento de certa tensão até institucional. O primeiro presidente eleito diretamente depois do ciclo militar era também o primeiro a testar um país pós-impeachment, que só não se deu legalmente porque ele renunciou primeiro. O petismo ajudara a desestabilizar Collor por bons motivos e decidiu que tentaria desestabilizar também seu sucessor, aí por maus motivos.  O motivo dos petistas era e é um só: jamais dar apoio a uma Presidência que não seja comandada pelo partido. Foram para a oposição o PT e o PFL — este partido, justiça seja feita, não havia colaborado para a queda de Collor ao menos; foi coerente no seu erro.
Petistas demonstravam, em suma, a sua notável habilidade para sabotar governos e a disposição de faltar ao país mesmo num momento de crise aguda porque preocupados apenas com seu projeto de poder. Luíza Erundina foi punida pela legenda por ter aceitado o cargo de ministra da Administração de Itamar. Decidiu deixar a legenda. Para todos os efeitos, os petistas não aceitavam “alianças com partidos burgueses” — Lula recusara o apoio de Ulysses Guimarães no segundo turno de 1989, naquele que foi, talvez, o ato mais indigno de sua história. De verdade, o partido estava de olho em pesquisas que indicavam que o Babalorixá de Banânia era o favorito à sucessão de Itamar. Assim, diante da possibilidade de chegar ao poder, por que se comprometer com a governabilidade do país, não é mesmo?
Juntando as pontasEntão junto agora este fio com aquele outro que larguei lá atrás. As circunstâncias da posse de Itamar Franco, que dependia do núcleo de estabilidade e credibilidade que passou a lhe fornecer o PSDB, e o fato de o PT, por maus motivos, ter decidido ficar fora do governo permitiram que Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda, juntasse a inteligência econômica necessária para elaborar e aplicar o mais ousado e bem-sucedido plano de estabilização da economia jamais havido no Brasil. Em muitos aspectos, dizem alguns especialistas em que confio, único na história. Durante um bom tempo, o Brasil passou a funcionar com duas moedas. Não faltou quem antevisse o desastre. O Brasil começava a se reinserir na ordem econômica mundial. Sim, o plano foi coordenado e liderado por FHC; sim, ele foi aplicado no governo Itamar Franco. O presidente era fraco o bastante para depender do PSDB e da massa crítica que fez o Real; ele era forte o bastante para bancar o risco — e foi preciso alguma coragem política.
O PT, claro!, ficou na oposição e tentou sabotar o plano de estabilidade — e todas as outras iniciativas que se seguiram, já no governo FHC, para estabilizar a economia. Lula e seus bravos, especialmente Aloizio Mercadante, anteviam um desastre de proporções monumentais. Lembro, à margem, que foi no governo Itamar que seu deu a privatização da CSN. Ali o petismo dava início à sua sanha vigarista “contra a venda do patrimônio nacional”, que se estenderia pelos anos seguintes. Retomo.
Eleito FHC, com o apoio de Itamar, o já ex-presidente deu mostras de que não havia entendido exatamente o alcance do plano que fora efetivamente implementado em seu governo e que demandava um conjunto de medidas para se consolidar — ele decidiu se opor a elas. Passou a falar como um político mais ou menos de oposição. Há quem queira que pretendia se candidatar à sucessão de FHC, eventual intenção frustrada com a aprovação da emenda da reeleição. Em 2002, Itamar apoiou a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.
Eleito governador de Minas em 1998, ainda na linha do confronto com FHC, que conseguiu seu segundo mandato das urnas, Itamar decretou uma polêmica moratória em Minas, que ajudou um tanto a bagunçar as contas públicas. As relações com o tucano nunca voltaram a ser, digamos, normais, embora tenham recuperado a polidez. Itamar sempre considerou que haviam lhe roubado a paternidade do Plano Real, o que não é, definitivamente, fato. Acima, explico as circunstâncias em que o plano se deu. Sua grandeza, reitero, foi ter tido a coragem de dar sustentação política a uma ousadia cuja extensão, ele próprio revelou depois, desconhecia.
Eleito para o Senado pelo PPS no ano passado, Itamar prenunciava uma atuação firme, em defesa de boas causas, combatendo o cesarismo inescrupuloso do PT. Infelizmente, a trajetória foi interrompida. Morre, reitero, um político cuja vida é compatível com seus rendimentos, que fez um breve governo, sim, mas honrado. Henrique Hargreaves, seu chefe da Casa Civil e seu assessor até hoje, viu seu nome envolvido numa acusação de tráfico de influência. Itamar tomou uma decisão rara — na verdade, até hoje, única: afastou imediatamente o auxiliar para que a investigação fosse feita com lisura. Provada a inocência do ministro, ele voltou. Para quem vê o PT afagar culpados, estranha um presidente que afastou mesmo um inocente, sobre quem, no entanto, pesavam algumas suspeitas.
Também entrou para a história um episódio envolvendo o então senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), um dos políticos que mais o fustigavam. ACM dizia ter um calhamaço de evidências de que havia corrupção no governo. O presidente marcou uma audiência com o político baiano, que prometeu levar uma pasta recheada de documentos. Itamar, então, fez algo inesperado: chamou a imprensa e convidou o senador a apresentar as suas provas também aos jornalistas. Eram só recortes antigos de jornal.
EncerroQueria Maquiavel que o feito notável de um príncipe requer que a “Virtù”, o conjunto das qualidades pessoais do governante, possam se casar com a “Fortuna”, um conjunto de fatores que caracterizam uma época, de que todos fazemos parte, mas que estão fora do nosso alcance; não dependem da nossa vontade. No caso de Itamar, isso se deu de um modo estranho: o dado mais notável de sua “Virtù” era justamente a sua fraqueza ao assumir o governo, o que o fez depender da boa-vontade de estranhos. As circunstâncias pediam um ato radical em favor da estabilidade da moeda, o que só poderia ser feito se o PT estivesse fora da aliança que sustentava Itamar — e o PT estava fora.
Olhem que formidável! A fraqueza de um e o mau-caratismo de outro permitiram que o Brasil saísse do buraco. Morre Itamar, um homem que fez bem ao Brasil. De quantos  da estirpe dos políticos se pode e se poderá dizer o mesmo? Que Deus o acolha em sua infinita bondade!

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